Análise – Clair Obscur: Expedition 33

Suponho que você provavelmente deva estar exausto de ouvir elogios sobre Expedition 33. Palavras de aclamação que são exageradas para uns e merecidas para outros; eu mesmo fui precursor de muitas delas. Mas hoje, aqui no SalvandoNerd, quero focar em uma palavra nova: Transgeracional. Soa prepotente? Talvez sim. Mas algo curioso sobre a prepotência é que ela não necessariamente está imbuída de mentiras.

Quem este jogo AA, feito por uma equipe pequena, pensa que é para pisar no mesmo gramado que gigantes como Monster Hunter ou Assassin’s Creed? 

Clair Obscur é um capítulo da história dos games. Por ser a incorporação tanto de um capítulo antigo quanto de um novo, classifico o jogo como transgeracional.

O maior feito de Expedition 33 foi, em 2025, o ano em que tivemos produções gigantescas e custosas tentando atrelar a qualidade de games ao dinheiro investido, nos lembrar o que é videogame e por que amamos tanto o videogame.

O evento é um poema orgânico; melhor ainda, um MANIFESTO. No mês em que todas as grandes empresas aumentaram o preço de seus produtos, ele foi lançado. O jogo resgata um sentimento de incredulidade que tínhamos esquecido. Embora os gráficos de um jogo sejam um belo cartão de visitas, é o conteúdo que o sustenta de verdade. E, meu amor, Expedition 33 não apenas se sustenta ou corre; ele literalmente dança.

Com esta introdução anticapitalista, permita-me provar por que você já ama este jogo e apenas não sabe.

UMA HISTÓRIA DE “ABSOLUTE GAMES”

Um mistério, um mundo parecido com o nosso, porém parecendo que veio de uma pintura, talvez um espelho? Um reflexo?… Isso importa?

Dentro da realidade que nos é proposta. Há pouco mais de meio século, aconteceu a fratura. Um evento do qual pouco sabemos.

O que sabemos é: nossa cidade Lumiere foi lançada para fora do continente. Do nada, aparece um monolito no horizonte, e de lá, uma mulher de cabelos brancos chamada Artífice pinta um número nele todos os anos. Esse número (cujo valor inicial foi 100) diminui progressivamente. As pessoas com a idade indicada pelo número passam pela gommage, que se traduz do francês “apagamento”.

Todos os que atingem essa idade cessam de existir, vivendo apenas nas memórias daqueles que ficaram para trás. Com a extinção de nossa espécie decretada, todos os anos uma expedição é feita ao continente para tentar impedir a pintura da Artífice e restaurar o futuro dos habitantes de Lumiere.

Um plot interessante decerto, mas o que o mantém dançando é o mistério, a fome de ver apenas a próxima cutscene e a esperança de que talvez você consiga completar esse quebra-cabeça. Quem é a Artífice? Por que ela pinta? Como ela tem o poder de fazer isso? O que é a fratura?

Diferente da maioria dos mistérios, ele não é mantido em sua integridade até o final da obra; respostas são dadas no decorrer do game. A chave se encontra no momento em que você entende que, a cada resposta adquirida, três novas perguntas se materializam.

Fazer você imaginar o que está acontecendo é parte intrínseca do movimento produzido para mantê-lo atento a cada minuto.

Contudo, muitos jogos têm um plot intrigante e às vezes, ainda mais que Expedition 33. Logo, é nos personagens que se encontra o elemento que mantém tudo flutuando.

PERSONAGENS QUE EU QUERIA TER COMO AMIGOS

Os personagens do jogo representam o renascer de uma antiga discussão, que envolve a complexidade falha do personagem do livro e o heroísmo inspirador do personagem do filme.

Jogos muitas vezes são fadados ao arquétipo do herói e de sua jornada. Não estou afirmando que o título efetivamente escapa da “jornada do herói”. Até porque, os elementos estão ali: os escolhidos, a jornada, as dificuldades, etc., tudo compõem.

Uma obra é capaz de imbuir o monomito e ser boa, no entanto, a obra excelente encontra um diferencial e o explora. Toda a nossa party é composta de seres falhos, que choram, xingam, desistem, caem. Clair Obscur quer, principalmente, que você se importe com os personagens – seja de momentos breves, como com Sophie, ou duradouros, como com Lune. Todos têm medos, falhas, egoísmos, motivações, e nenhum deles jamais é esquecido.

Afinal, estamos trilhando o caminho para os que virão depois de nós. A memória e o amor da comunidade são o gás que os move. Em uma dança contínua entre personagens e história, o jogo não tem medo de fazer o que precisa ser feito para manter o fluxo dos acontecimentos, e isso é algo que você vai aprender a admirar.

O idealismo e a bondade de Gustave fazem frente ao seu desespero e imediatismo; a responsabilidade de Lune, ao seu pragmatismo por vezes desumano; o fascínio de Maelle, à sua constante insegurança; as piadas de Sciel, aos seus constantes problemas que ela internaliza. Todos profundos e todos mistérios a serem desvendados.

MAIS UM BATE E ESPERA?

Sim, o jogo é por turnos, e isso não é um demérito. Enquanto a ação proporciona um dinamismo inegável, o combate por turnos permite um nível estratégico e tático minucioso que vai fazer você se sentir um senhor de guerra.

Oficialmente, o jogo é majoritariamente aceito como RPG de turno. Agora, a discussão é se ele é um turno “raiz” ou “nutella”. Seria ele um turno puro ou um híbrido de turno e ação?

O diretor relatou que o jogo se inspirou fortemente em Final Fantasy, Persona, DMC, Demon’s Souls. De fato, consigo ver todos eles lá. Um jogo não é apenas uma coisa, assim como as pessoas que o jogam.

Resumidamente, encontramos o inimigo, temos a oportunidade de um ataque para iniciar o combate, que acontece em outra tela. Lá, o tempo para, e escolhemos a ação dependendo dos nossos pontos de habilidade em turnos estratégicos, nos quais temos conhecimento da ordem das nossas ações e das do inimigo. E, como em todo bom RPG de turno, várias estratégias complexas podem ser elaboradas.

Tudo em Expedition 33 foi feito para ser conectado e intercalado: as armas escalam com os stats como em Dark Souls, mas também os equipamentos – que no jogo se chamam “pictos” – liberam habilidades passivas que podem ser usadas como equipamentos permanentes por todos os integrantes da party (desde que eles tenham “pontos de equip” para gastar).

Tudo isso dialoga com o combate, que é feito para funcionar como um nado sincronizado entre os personagens. Você pode equipar um “picto” que inflige o status “queimado” em um inimigo para, em seguida, outro personagem usar um ataque que se beneficia de alvos em chamas, deixando-o com o status “marcado” (+50% de dano no próximo ataque), e o último aliado da equipe usar um golpe com bônus.

Tudo é sempre sincronizado e em harmonia.

Vale dizer que todos os personagens funcionam com sistemas únicos: Maelle tem stances que aumentam seu ataque ou defesa, além de bônus por realizar um ataque mais forte dependendo da stance; Gustave carrega energia para um ataque devastador; Lune coleta manchas de tinta elementais que dão bônus dependendo do elemento da mancha; Sciel tem cartas que podem ser aplicadas ao inimigo e que, ao serem retiradas posteriormente, concedem bônus de dano ou cura.

Porém, o motivo da discussão é que toda a defesa da equipe e o dano crítico são realizados com Quick Time Events. Apertando diferentes botões no momento certo, você pode conseguir um ataque perfeito, desviar, aparar ou pular.

Para muitas pessoas, isso o transforma em um action RPG e, por isso, ele seria um RPG híbrido. Para outros, isso é apenas um elemento de dinamismo dentro do sistema de turnos, para adequá-lo à evolução dos videogames.

A conclusão? Não importa. O que importa em um jogo é como você se sente, se diverte, aprende e se emociona. Os rótulos da classificação não são o jogo; o jogo é a experiência em si. Por isso, mesmo que não goste de combate por turnos, você deveria dar uma chance a esta obra de arte de lhe transcender. Se você está aqui, os games são uma parte de você. Você não precisa classificar sentimentos, da mesma forma que não precisa se classificar – a menos, claro, que você queira.

O LEVEL DESIGN TRANSGERACIONAL

O level design e a direção de arte do jogo são como um manuscrito queimado de Alexandria: algo raro e precioso. Adotando a estética da Belle Époque francesa e sendo fiel em toda a sua continuidade a pinturas modernas e renascentistas, barroco europeu, Monet… Dê um nome, e estará lá.

Algo que mencionei desde o início é a capacidade que este jogo tem de unir a Geração Z e os Millennials em total sintonia, como, literalmente, uma sinfonia.

Muito da identidade dos jogos dos anos 90 e 2000 ficou para trás. Algumas coisas para o bem, como o random encounter, outras, nem tanto. O sentimento daquela época foi teleportado para nós, porém atualizado e reescrito.

Temos um overworld que parece uma pintura viva e mecânicas atualizadas de jogos soulslike, como a campfire. Encontramos incentivo à exploração, segredos, minigames – tudo o que se espera de um game moderno. Especialmente no controle do grind: os inimigos foram dispostos de forma orgânica e espaçada, mas que concedem mais experiência para melhorar o ritmo do jogo e o gameplay.

Como dito, um resgate adaptativo, pensado em uma saudade e uma novidade; em suma, transgeracional.

A música é uma poesia em forma de áudio. Eu não sou músico, porém, provavelmente, você também não, o que importa quando ouvimos uma música é o quanto ela nos emociona, o quanto toca a nossa alma. Deveras vezes, a música de Expedition 33 tocará sua alma de formas que são crimes em alguns países.

CONCLUSÃO

Eu concluo que não queria concluir Expedition 33. Não queria que acabasse. Talvez você também não vá querer.

Mas fico feliz com o tempo que tive com o jogo, com o que aprendi, com o que vivi. O reino repleto de mistérios inquietantes, personagens familiares, gameplay frenético e um mundo que eu simplesmente não conseguiria conceber por mim mesmo, nem mesmo em uma pintura.

Tudo o que o jogo nos conta é que não são orçamentos bilionários, empresas gigantescas ou investidores ativos que fazem videogames.

São pessoas. 

Pessoas como eu e você. 

Pessoas que chamamos de desenvolvedores. 

São pessoas que têm a mesma paixão por games que eu e você; uma paixão que perdura por mais tempo do que conseguimos lembrar.

E essas 33 pessoas, que saíram dos seus trabalhos onde estavam entediadas e desvalorizadas, com este jogo nos deixaram uma mensagem:

Em um mundo em que o jogo se torna impagável, a IA nos ameaça, e as microtransações se tornaram o mercado…

 Nós persistimos.