Quando Silent Hill f foi anunciado, durante uma conferência da Konami sobre a franquia, eu confesso que fiquei muito cético sobre o destino da série. A Konami já havia matado o projeto “Silent Hills”, com Hideo Kojima, Junji Ito e outros nomes, e as políticas da empresa me fizeram crer que não seria um título à altura do que Silent Hill nos ofereceu no passado.
Felizmente, eu posso me gabar de ter uma comunidade engajada o bastante para me oferecer uma chance de expor o que eu acho sobre videogames e tive recentemente a oportunidade de experienciar o que de fato é Silent Hill f e porque esse jogo merece a nossa atenção. Eu não quero entregar muito dele aqui nessa introdução, mas se eu pudesse resumir esse jogo em uma única palavra, essa seria “coragem”.
Bom, sem perder muito tempo, é hora de adentrar a névoa e lidar com os monstros da nossa própria mente para entender: o que diabos é Silent Hill f e porque ele é um jogo tão relevante em 2025?
Em meio ao nevoeiro
Se você joga videogame há algum tempo, eu acredito que você já deve sacar mais ou menos sobre o que Silent Hill normalmente trata. É um trunfo da série poder conversar sobre assuntos pesados quando, na época de seu lançamento original, os jogos de Survival Horror tinham zumbis e ameaças biológicas como parte da trama.
Silent Hill sempre foi por uma via psicológica, pegando nuances humanas e abordando temas como culpa, solidão, remorso, sexualidade e violência de uma forma que o jogador sempre se pega questionando ao decorrer do game. É claro que a série tem seus altos e baixos nesse percurso. E Silent Hill f, para nossa sorte, é um desses que está no ponto alto dessa montanha-russa de emoções.
Eu queria efetivamente começar esse texto falando uma coisa que pode ser um tanto óbvia, mas que faz parte da minha responsabilidade enquanto o autor desse texto aqui: por mais que eu seja completamente empático com o tema central do jogo, é muito difícil eu conseguir transmitir um sentimento do qual eu nunca passei. Veja, eu sou um homem e todo o desenrolar aqui será sobre ser – ou tornar-se – uma mulher num contexto histórico do Japão dos anos 60. Eu realmente nunca vou poder dizer com propriedade o que é passar por uma determinada situação, sem tê-la experienciado. Por isso, se eu cometer algum deslize aqui, podem me contatar para eventuais correções ou alterações, beleza?
Bom, feito o aviso, vamos lá! Nós abrimos o game com a personagem Hinako Shimizu falando com uma boneca em mãos à sua irmã, Junko, que não pode brincar de casinha com suas amigas porque ela sempre brinca com os meninos. A cena então corta para Hinako com um olhar triste, enquanto remói lembranças do passado. Até que encontra sua irmã.
Hinako lhe agradece por sempre ter cuidado com ela na infância, e presenteia Junko com um guizo. Ambas se abraçam e o game de fato é embalado por uma cantiga, mostrando diversos pontos da cidade rural de Ebisugaoka.
Após isso, somos levados para dentro da casa de Hinako. Há uma discussão entre ela e seus pais. Enquanto o pai discute e a xinga, a mãe tenta apaziguar os ânimos. Hinako então sai de casa com raiva e diz que vai encontrar seus amigos na cidade.
Após esse trecho introdutório, a gente já sente o tom desse jogo. Se você der uma olhada no Diário de Hinako, já há uma pista do que o game terá como tema central aqui. Uma coisa que vale destacar é que o Japão dos anos 1960 foi um momento de efervescência do movimento pela igualdade de direitos das mulheres.
Claro que esse processo é um pouco mais longo e teve momentos importante no início do século XX, mas foi com o pós Segunda Guerra Mundial que o movimento ganha força e houve diversas conquistas, como o direito ao voto e uma nova seção na constituição do país, garantindo igualdade entre gêneros.
Ao explorar a cidade, Hinako então encontra com seu colega e amigo de infância, Shu. Eles têm uma breve “conversa”, mas é nítido a tensão entre ambos. Até que são interrompidos por Rinko e Sakuko. Há uma breve interação entre eles, até que Hinako percebe que uma névoa se instaura no lugar. Após isso, Sakuko percebe algo estranho, como se flores brotassem de sua pele. Ela cai aparentemente morta no chão e os três fogem desesperados, e é aqui que de fato o jogo começa.

Shu e Hinako são amigos desde a infância. O tempo parece ter criado uma tensão entre eles – Imagem: Konami
Duas metades de um mesmo inteiro
Silent Hill f aproveita bem uma estrutura vista em outros jogos de terror. Todo o game é feito por uma câmera de cima do ombro. No game podemos coletar armas pelo cenário, que vão desde canos de ferro, até facas, foices e armas mais pesadas, como machados.
Porém, diferente de seus antecessores, aqui temos duas coisas inteiramente novas: uma barra de stamina e praticamente todas as armas são quebráveis. Isso cria um sentido ao jogador de que ele deverá calcular muito bem como será a investida contra os inimigos, pois dessa vez devemos pensar no combate do game de forma mais estratégica e meticulosa, uma vez que os inimigos desse game também não serão simples monstros. Eles possuem um sistema de ação e reação que farão o jogador pensar muito quando deverão enfrentá-los e quando deverão evitá-los.
Há uma coisa interessante aqui nesse game que é o seu funcionamento em duas seções: uma, jogamos com Hinako na cidade e em seus vários trechos nos arredores, e há trechos que parecem uma espécie de “plano espiritual”, onde somos apresentados a um dos personagens mais misteriosos do game: O Máscara de Raposa.
E assim, eu não quero estragar a experiência de ninguém, mas eu queria muito dizer que é nessa divisão que o jogo brilha. Porque há tantas alegorias que convergem no tema central, que eu não me sinto confortável em falar sobre eles de maneira aberta para não estragar a experiência de ninguém.
A única coisa que eu queria abordar aqui é que é muito simbólico como as coisas acontecem nesse plano astral, e como mesmo com tudo sendo implícito, fala de uma forma explícita sobre o que é se tornar uma mulher nessa sociedade. É abandonar certos costumes? É fazer sacrifícios em nome de uma felicidade abstrata? É obedecer a rituais em nome de um status? Eu recomendo que você que está lendo, jogue. Porque essas perguntas vão ecoar na sua cabeça.
Quebra-cabeças, monstros e tudo o que Silent Hill faz de bom
Eu acho que Silent Hill f conduz muito bem o que a franquia sempre fez de bom, que é dosar os momentos de ação, com os quebra-cabeças. Aliás, eu acho que os quebra-cabeças aqui funcionam de forma muito orgânica, já que é preciso muita atenção aos textos que lhes acompanham para sua resolução.
É claro que nenhum deles vai ser o puzzle do piano de Silent Hill 1, o que é bom, já que por mais que você leve um tempo para desvendar, é completamente satisfatório resolvê-los apenas com texto e força de vontade. A série ainda consegue entregar um nível de quebra-cabeças bem interessante e que algum te farão ler e reler os textos até tudo ficar claro.
Sobre os monstros, eu acho que ao mesmo tempo que é um trunfo, também é um dos problemas do jogo. Isso porque temos uma variedade de monstros bem pequena aqui, algo em torno de sete ou oito tipos de monstros, fora algumas variações e os chefes. Porém, quando a gente analisa o design de cada um deles, é aí que o jogo continua brilhando. Silent Hill sempre teve uma excelência em personificar sentimentos em seus monstros. Desde o primeiro jogo, até agora, essa tradição segue firme e, apesar da pouca variedade, eles conversam muito bem com o sentimento do game.
Uma coisa que me chamou muito a atenção é quando percebemos a distinção entre os monstros com feições masculinas e femininas. Normalmente, os monstros de feições femininas são menos grotescos e em sua grande parte tem uma aparência de boneca. Isso diz muito sobre como a crítica aqui é sobre como a mulher é vista na sociedade. O monstro mais comum aqui é literalmente uma boneca (talvez muito) inspirada nas enfermeiras de Silent Hill 2, com “proporções perfeitas”.

O combate tem suas particularidades e aprender como lidar com os monstros é parte disso. Imagem – Konami
Já os monstros que se parecem com homens são em sua maioria grotescos, com várias faces e que vomitam sem parar – pode ser uma alusão ao comportamento do pai de Hinako, ou até mesmo como ela enxerga a maioria dos homens ao seu redor, assumindo identidades e “vomitando” coisas nas mulheres? É uma interpretação. Há também um outro monstro que não tem face, mas possui uma boca e uma língua enorme – lembra bastante o Licker de Resident Evil 2 -, e o principal ataque dele é justamente agarrar Hinako e lambê-la – o que também gera diversas interpretações e eu acho que nem preciso me estender aqui.
É claro que essas são algumas das possíveis leituras que podem ser feitas desses inimigos. Mas o fato é que Silent Hill f segue a tradição da franquia de não criar monstros apenas para ser um obstáculo no seu caminho, mas para lhe contar um pouco sobre como a personagem enxerga esse mundo e o interpreta na sua própria mente.
Um terror escondido: o desempenho no PC
Como eu já disse em algumas análises anteriores, eu não tenho um PC de ponta, mas ele ainda me possibilita jogar jogos mais recentes dentro das suas especificações recomendadas. No entanto, talvez o maior terror em Silent Hill f seja justamente o seu desempenho em algumas áreas. A Unreal Engine 5 ainda é um problema tanto para PCs mais modestos, como é o meu caso, quanto para PCs de última geração.
Infelizmente, essa engine tem sido um problema crônico para vários games. E eu já reclamei o suficiente dela na análise de Cronos: The New Dawn, pois mesmo com as configurações medianas, stutterings, quedas de quadro e tearings (aquelas quebras na imagem) vão te perseguir mais do que qualquer monstro nesse jogo.
E não adianta muito você ter um PC parrudo que vai aguentar todo o tranco. A Unreal Engine vai te dar um susto com esses problemas mesmo que você tenha uma RTX 5090 de última linha. Portanto, se você for jogar esse game no PC, vá sabendo que a Unreal Engine ainda é o grande fantasma que assombra os videogames em 2025.
E o saldo é… ?
Silent Hill f foi uma grata surpresa para mim. Eu ainda estou digerindo esse jogo. Ele é uma reinvenção da franquia e eu estou muito animado para ver o que nos aguarda no futuro. Como eu falei no início do texto, eu acho que esse jogo é muito corajoso em sua abordagem, mas também como ele trata esse tema do machismo, da sociedade patriarcal e como é essa transição da menina para a mulher é retratada.
É um jogo que nos permite refletir não apenas sobre esse recorte histórico do Japão pós-Guerra dos anos 1960, mas como isso ainda, infelizmente, é um elemento presente na sociedade. Esse é aquele tipo de jogo que a gente pode debater muito sobre seus diversos prismas.
Como é bom ter Silent Hill de volta, e como é bom poder usá-lo para debater assuntos importantes. Esse, meus amigos e minhas amigas, é o poder do videogame.



