Hell Clock
Nos últimos dias, tenho gastado todo tempo livre para jogar Hell Clock. Dias se tornam noites e noites se tornam dias. O tempo passa. Bem, para outros passa. Eu sigo preso no limbo entre a história de Canudos e como, curiosamente, demônios se encaixam perfeitamente nela. Me sinto seguro em dizer que o jogo me atribuiu algo que chamo de “Assassin’s Creed Vibes”.
Agora que já invoquei toda sua raiva e desprezo com a afirmação superior, me deixe explicar. Quando eu costumava jogar Assassin’s Creed, eu sabia (assim como todos) que ele é um jogo baseado em fatos históricos. Por isso, às vezes é difícil entender o limite da ficção e do fato. Diversas vezes me pego indagando: “mas quem é essa pessoa?”, “ela é real?”, “isso aconteceu mesmo?”, “que evento é esse?”.
A história que aprendemos na escola é um recorte, e pontos específicos são muitas vezes reduzidos para caber no currículo. Por isso, videogames, muitas vezes por curiosidade, me levam a um vídeo de um historiador no YouTube para aprender história.
Hell Clock
É aqui que eu paro de falar sobre isso. Quando iniciei esse jogo brasileiro sobre o sertão, estava esperando apenas uma jornada cultural. Estou feliz em falar que estava errado.
Hell Clock se sustenta sozinho, sem precisar da narrativa ou usar “somos um jogo brasileiro que fala sobre Brasil” como muleta. Claro, precisamos de mais jogos brasileiros sobre o Brasil, e ele faz isso com um cuidado que vai da dublagem EXTRAORDINÁRIA à descrição e aos nomes dos objetos. Mas o ponto é: ele não precisa, pois sozinho ele consegue peitar jogos como Hades da Supergiant em nível de qualidade, gameplay e tudo que vem junto.
Dedico então essa análise, que era destinada a ser sobre o sertão brasileiro, ao jogo que simplesmente mostra tudo que o brasileiro é capaz.
Hell Clock
Estranhamente, depois de tudo isso, eu vou começar com um defeito. Hell Clock não começa mostrando tudo que ele é capaz, e por isso você vai tentar encaixá-lo em caixas. “Esse diálogo me lembra Hades”, “esse sistema de habilidade e o level design me lembram Diablo”. “Essas ondas de inimigos me lembram Vampire Survivors”.
Olha que curioso. Você está certo e errado ao mesmo tempo, pois, se você passar tempo o suficiente com ele, vai descobrir que ele é tudo isso e nada disso.
A progressão dele é até hoje uma das mais fluidas que já vi em roguelites. É palpável o quanto você fica mais forte de uma run para outra. O motivo disso é que, diferente da maioria dos roguelites, ele tenta aumentar o número de upgrades permanentes em vez de diminuí-los o máximo possível.
Hell Clock
Isso cria um paradigma. O motivo dessa mecânica está no próprio gênero: em roguelikes, cada run é uma run e você começa com nada. O roguelite permite progressão para gerar a sensação de facilidade com as tentativas e evitar a frustração do “cheguei tão longe e perdi tudo”. Mas, normalmente, os jogos tentam se manter o mais próximo possível da experiência do roguelike. Hell Clock não tem vergonha de se afastar de suas raízes, e com isso ele inovou e subverteu algo que há muito tempo parecia estar estagnado.
Em Hell Clock, conseguimos relíquias equipáveis e duas moedas do jogo (uma permanente e outra não) nas runs. Parece pouco, mas elas são usadas para comprar equipamento, obter e melhorar habilidades, fazer upgrade de status como: número de poções, mais EXP e moedas, resistências, mais local na bolsa de relíquias. Também podemos fazer melhoria das relíquias que se encontram na run. Conseguimos até melhorar os status básicos e conseguir habilidades únicas com um sistema de constelação. TODOS ESSES UPGRADES SÃO PERMANENTES!
Então como esse jogo consegue se chamar de Roguelike? Soa só como um RPG de ação isométrico como Diablo, não?
Eu normalmente concordaria com você. Só que…
O jogo subverte tudo isso, porque a sua luta não é contra a dificuldade, e sim com o tempo.
Hell Clock
Nossa run é invadida por um elemento peculiar: o relógio, mais precisamente, o timer. Nossa corrida tem um tempo limitado para ser completada e, seja onde estivermos, o quão forte estamos ou o quão longe fomos, se o tempo acabar, nosso personagem simplesmente morre e aquela run se dá por encerrada.
Esse elemento subverte completamente o jogo e o mantém como um roguelite digno. Alguns updates que mencionei antes são inclusive para estender esse tempo. Uma ressalva: durante a luta de chefes o tempo congela.
Esse modelo meio speed run, meio “Corra Lola corra!” muda também completamente o fluxo do jogo. Diferente de Hades, que nos dá a escolha de uma arma e mudanças acontecem com presentes dos deuses, antes de entrar na run escolhemos um leque de até 5 habilidades para jogar.
Em minha jogatina eu me apaixonei pelo ataque da peixeira: basicamente ficamos rodando igual uma beyblade dando dano enquanto andamos. Eu fiz a escolha das minhas habilidades com base em habilidades que posso “castar” enquanto estiver em movimento.
Hell Clock – Peixeira
Em suma, é possível fazer várias builds customizadas que mantêm uma fluidez no jogo e se adaptam ao jogador. Lembrando que muitas relíquias são específicas de habilidades.
Durante uma run, passar de nível nos deixa escolher dentro de uma ampla gama de upgrades temporários das habilidades e também podemos pagar por algumas a uma estátua no final de cada andar.
No início, citei a fluidez e como é nítida a sua evolução e a do personagem. Isso é visível pelo método de fluxo de combate escolhido.
Diferente de muitos roguelikes que tendem a ser precisos e metódicos, esse segue uma base de regras que só posso descrever como CAOS. Se você já jogou Vampire Survivors, você vai entender.
Vampire Survivors
Nosso personagem foi feito para derreter hordas de inimigos sem nem conseguir descrever direito o que está acontecendo na tela de tão abarrotada de monstros que ela está. A única coisa que conseguimos identificar nessas horas é se estamos ou não sob um solo que dará dano.
Demorar para matar inimigos é gastar um tempo que não temos. Então o jogo criou métodos para nós sentirmos “Deus” dentro dele. Quando temos dificuldade para matar um mob normal, entendemos que estamos fracos. O mesmo boss que demorei 10 minutos para matar, horas depois estava-o matando em 5 segundos.
A arte do jogo é belíssima, o gráfico estilizado com outlines grossos, cores vibrantes e extrema brasilidade. Ele respira personalidade.
O design, como citado anteriormente, lembra muito o Diablo 2 em escolhas e level design. O segundo mapa, que acontece na caatinga, lembra muito o level do deserto de Diablo 2, com direito inclusive a besouros como inimigo comum.
A interface é intuitiva e, tirando alguns QOL que poderiam ser implementados em alguns menus, é bem simples de entender.
Tudo foi feito para falar de Canudos e do Brasil. Os discursos, com sua dublagem que não canso de elogiar, também têm mensagens que parece que viajam no tempo. Faz sentido tanto hoje quanto na época. E isso é visto inclusive nos detalhes, como em uma relíquia que é um papel escrito “abolição”. O nome do objeto é PROMESSA ESCRITA, falando de forma sutil sobre o Brasil fora e dentro da tela de hoje.
Promessa Escrita – Hell Clock
Hell clock é cultura, é games, é Brasil… e em cordel, com um sotaque do sertão, com a seca e caatinga, fala de nossa história, um povo que queria ser de si próprio. Soberano.
Nas análises que faço, normalmente foco em questões sociais, faria sentido falar do sertão, da aula de história, as críticas de correlação ao Brasil daquela época com o atual.
Mas de verdade, eu fiz. Jogo é sociedade.
Hell Clock está em pé de igualdade com gigantes como Diablo, Vampire Survivors e Hades. Ele é prova viva da qualidade, beleza, aprendizado, entretenimento e cultura que o brasileiro é capaz. Tudo isso feito sem orçamentos gigantescos.
Fizemos arte, fizemos games e, se você jogar, verá que o jogo não precisava nem da minha análise, pois ele se sustenta sozinho.
É um jogo… soberano.
Hell Clock
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